sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Discussão em torno do “kit-gay”, oportunidade para debater a homossexualidade nas escolas.


O "kit-gay" teria sido idealizado para exibição de vídeos 
nas escolas públicas, incluindo alunos em idade infantil.

Em uma manobra ousada, o candidato à prefeitura de São Paulo José Serra (PSDB) decidiu ressuscitar o “kit-gay” produzido pelo Ministério da Educação para ser exibido nas escolas públicas do país durante a chefia do Ministério pelo candidato Fernando Haddad (PT), seu rival nas urnas. O objetivo de Serra seria conquistar, apontam alguns, votos do eleitorado conservador, em especial, os evangélicos.

O que Serra fez relembra o evento “aborto” ocorrido nas últimas eleições presidenciais. A legalização do aborto foi usada contra o PT e contra a Dilma Rousseff (PT) no que resultou em um tiro pela culatra após o surgimento de acusações de abortamento pela própria mulher de Serra e pela rejeição do eleitorado em tornar a eleição um debate religioso. Agindo como quem não aprende com os próprios erros, Serra se enganou mais uma vez e pagará caro nas eleições ao tentar trazer o conservadorismo e a religião para o centro do debate.

Montagem anônima feita nas 
eleições presidenciais:  rejeição ao apelo 
religioso e conservador de Serra 
com o tema aborto.
Desde que foi divulgado pela imprensa e na internet o “kit-gay” tem provocado acalorados debates. Para alguns, os vídeos fazem proselitismo da orientação sexual homo e bissexual. Após a manifestação de vários setores sociais, a própria presidente Dilma Rousseff se manifestou contra o kit abortando o programa do Ministério da Educação justamente sob a alegação de proselitismo. A suposta intenção do Ministério de exibir o vídeo também às crianças elevou a revolta dos rivais do kit e transformou Fernando Haddad em inimigo público número um dos conservadores e religiosos (a exemplo, Silas Malafaia).

Os vídeos do malfadado “kit”, caso isso tenha sido de fato considerado pelo Ministério da Educação, em hipótese alguma deveria ser exibido no ensino fundamental uma vez que as crianças desconhecem suas preferências sexuais e não podem se identificar com segurança em um grupo de orientação sexual possível (heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade). Além de que as famílias nessa faixa etária detém sobre a educação da criança primazia em relação ao Estado e à escola. A educação das crianças depende inegavelmente da vontade e das escolhas dos pais, livres para determinar a educação dos filhos. 

O conteúdo dos vídeos faz inegável defesa da homoafetividade (aqui link para os vídeos). Essa defesa da homoafetividade, por exemplo, é feita em um dos vídeos demonstrando como vantajoso para um rapaz a sua bissexualidade. Teria o rapaz o “dobro de chances” de encontrar um parceiro (a) ideal. O vídeo se assemelha à verdadeira propaganda e pode incentivar práticas homossexuais por jovens que não têm essa orientação sexual. Esses vídeos são claros exageros de associações GLBT que não representam a opinião de todo o segmento social e que, avançadas demais nos costumes, esquecem o direto dos outros de escolher os seus costumes também.

Contudo, não nos enganemos. O debate nas escolas da homoafetividade é fundamental. Principalmente para os adolescentes uma vez que estes já possuem a orientação sexual definida e já percebem a presença ou ausência de desejos homossexuais a configurar essa possível orientação da sexualidade. De acordo com dados da UNESCO em 2001*, mais da metade dos jovens do sexo masculino nas capitais do país iniciaram sua vida sexual por volta dos 14 anos de idade e as meninas por volta dos 15 anos. Ou seja, em torno dessa faixa etária, espera-se que o adolescente já tenha iniciado sua vida sexual e definido a sua orientação sexual, estando preparado para a educação quanto à sexualidade, onde inclui a diversidade de orientação sexual e a discriminação sexual.
Namorar sem a orientação dos pais e dos professores pode ser 
perigoso para o adolescente.

De acordo com a Constituição Federal, legislar sobre educação é competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal (Art. 24, IX, CF). Aos Municípios é dada a responsabilidade de em cooperação técnica com os demais entes efetivar a educação infantil e de ensino fundamental (Art. 30, VI e 211, §2º, CF) e aos estados a prioridade no ensino fundamental e médio (Art. 211, §3º, CF).  Determina também a Constituição Federal de forma ampla a responsabilidade do Estado pela Educação (Art. 205, CF) e a competência administrativa comum nesta matéria (Art. 23, V, CF).

Independente de qual ente político se trate, todos têm a obrigação de fornecer o serviço público de educação e consequentemente todos devem adotar de forma integrada ou de forma autônoma, normatização e programas que apontem as diretrizes na educação sexual dos jovens (onde a homoafetividade está inserida). Os riscos que demonstram a necessidade da educação sexual são por todos conhecidos e apontam para a generalidade dos jovens, independente de orientação sexual: gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, prostituição, promiscuidade, violência sexual, agressividade, depressão, vergonha, etc.

"Então eu saia de sala, eu ficava dando
voltas no corredor, eu ficava no banheiro trancado ou 
bebia água. Ou eu ia para casa mais cedo ou eu dizia
para a minha mãe que não tinha tido a última aula.
Porque, pra mim, a solução que eu achava que fosse
seria evitar, fingir que nada estava acontecendo."***
Relato de jovem gay vítima de discriminação escolar.
Sabe-se que os jovens homossexuais e bissexuais são mais sujeitos à violência, ao abuso de drogas, ao abandono familiar, à evasão escolar, à depressão, ao suicídio e à contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. Supõe-se 10 mil a 12 mil casos de discriminação por ano registrados no país**. 

A escola não deve adotar posturas de incentivo a determinada orientação sexual, mas tem a obrigação de educar os jovens homossexuais ou bissexuais da mesma maneira como faz com os jovens heterossexuais. Tratar a homoafetividade como tabu só compromete ainda mais a segurança dos alunos de sexualidade diferenciada e pode resultar no fracasso da escola em atingir um resultado satisfatório na educação desse segmento de jovens.

O Art. 227, CF****, é claro em determinar a responsabilidade do Estado, da família e de todos em promover  aos adolescentes o direito à vida, liberdade, saúde, dignidade e respeito, protegendo-os contra a discriminação, violência, negligência, exploração, opressão.

Assim, cabe ao Ministério da Educação, às Secretarias Estaduais e Municipais de Educação determinar (sem usurpar a mesma obrigação de todos os poderes, órgãos do Estado, da escola em si e dos educadores) o caminho a ser seguido para a inserção dos jovens de orientação sexual diferenciada, como um segmento prioritário dentre os demais devido às fragilidades típicas da idade acentuadas pela descoberta de uma orientação sexual diferente do grupo majoritário e passível de forte discriminação social. Sem, contudo, cair em exageros mal vindos de proselitismo e de incentivo à sexualidade precoce.


*CASTRO, Mary Garcia. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO. 2005
***GOIS, João Bosco Hora; SOLIVA, Tiago Bacelos. A Violência contra gays em ambiente escolar. 2011. Disponível em <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13899/7592>  Acesso em: 19 de outubro de 2012.
****Art. 227, CF. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.




segunda-feira, 18 de junho de 2012

ANESTESIA POLÍTICA


Dilma no palanque.
Foi preciso aprender fazendo.
Quando o país elegeu para presidente uma mulher que nunca tinha disputado uma eleição, nascida e desenvolvida politicamente nos bastidores, com dificuldade de se expressar, uma mulher a que um palanque era tudo, menos o seu lugar natural, a minha justificativa foi atribuir a vitória ao sucesso político do presidente Lula e ao insucesso do PSDB em insistir na candidatura de Serra (fraco).

Contudo, depois dos primeiros voos do governo, quando surgiram os índices altíssimos de aprovação, as minhas dúvidas cresceram. O que fez após a queda de inúmeros ministros envolvidos com corrupção, com o crescimento econômico estagnado e inferior aos índices do governo anterior, a presidente manter nas pesquisas resultados de aprovação característicos de grandes governos?

73% de aprovação. Isso não é qualquer coisa. Isso é um índice alto de popularidade e nas democracias atuais um índice difícil de alcançar. Então. O que faz do governo brasileiro um sucesso de popularidade? A minha resposta para essa questão é bem simples. Desde que o Brasil encerrou a fase de crise econômica permanente, dando fim ao caos econômico e inaugurando um crescimento estável e inflação controlada (com o governo FHC e governo Lula) a população passou a se tornar apática politicamente. O governo Lula concluiu oito anos de crescimento econômico considerável e o impacto na qualidade de vida das pessoas tornou todas as demais questões políticas (corrupção, educação, política externa, etc.) desinteressantes para o eleitorado. A única coisa que interessa ao povo brasileiro, atualmente, é o crescimento do consumo.
Consumo: muito além do feijão com arroz

 Com a economia em dias, a classe média passou a consumir mais, e o consumo chegou, pela primeira vez, a classes humildes da população, foi um processo longo para o país onde o PT se inseriu com êxito. Mas nada disso pode sozinho justificar os sucessos petistas. Por detrás da qualidade do governo Lula no aprimoramento da política econômica e em engatilhar o Brasil no crescimento, existe a poderosa máquina de propaganda que o PT iniciou na primeira vitória de Lula e que nunca encerrou. O carisma do presidente “operário-retirante” somado ao sucesso do maquinário ideológico e de propaganda deu a inúmeros brasileiros uma sensação contínua de bem-estar social. Varrido o governo FHC da memória dos brasileiros pela ideologia petista, restou apenas a identificação do governo Lula, ou quiçá de Lula, no sucesso recente do Brasil.

Nem o mensalão ou a recente crise nos ministérios é capaz de tocar o sentimento do povo, que em situações normais poderiam ter sido levados a diminuir a popularidade do governo. Toda a fascinação pelo petismo se esconde no sucesso econômico e na propaganda disseminada. O escândalo que derrubou Collor foi decisivo para o seu governo, mas o “mensalão” não foi decisivo para Lula. Não apenas porque a convulsão de um impeachment não era desejada, mas principalmente porque para que um governo seja mal avaliado é fundamental a percepção do povo da sua própria condição econômica, percepção nefasta em Collor e positiva em Lula. Isso, o crescimento econômico, foi uma realização a que o PT mais atribuiu a si do que dele diretamente decorreu, tudo graças ao êxito propagandístico.

Como uma boa logomarca, a estrelinha também evoluiu.


Para finalizar essa análise, é necessário ainda acrescentar um fator que surge como um dos mais fortes e determinantes da boa imagem dos governos nacionais petistas. Esse fator é a correlação entre a ascensão de Lula e o fim dos governos assim chamados de “elitistas”. A primeira vitória de Lula foi construída sobre o baluarte da ética pública, foi identificada com uma reviravolta nacional em que pela primeira vez um partido genuinamente de esquerda havia alcançado o governo. Apesar do apoio que se seguiu do PMDB e de outros partidos ligados à política tradicional e sendo o PT um partido aceito pelas classes altas e inofensivo aos seus interesses, não é assim que a militância observa o seu próprio partido que dissemina o mito da perseguição e golpismo elitistas. Esse mito é uma das bases de sustentação do PT, funcionando como gasolina ou combustível para a continuidade da marcha utópica que anteriormente movera os militantes do partido.

Com essas considerações finais e sem formalismos de regras de redação, encerro o texto. Agora é esperar como uma CPI voltada em parte para a oposição poderá contribuir no apoio da população ao governo petista, eu palpito que a CPI será irrelevante como fator positivo na avaliação da presidente. Como tudo tem sido, a não ser a economia e o consumo.

domingo, 29 de abril de 2012

NATURE BOY/NAT KING COLE (MADRUGADA)



Noite Estrelada sobre o Rio Ródano.
Van Gogh. O uso da refração lembra o impressionismo.
Uma bela música completa qualquer madrugada. Quando a música é de Nat King Cole*, a madrugada pode desenvolver ainda mais as suas qualidades. Além do silêncio, é a impressão de que todos estão submersos na mesma quietude o que a torna tão viva em sentimentos. É hora de vigília enquanto os outros dormem. 

Em alguns momentos da vida, sentimos-nos iluminados por uma grande ideia. É o que acontece quando saímos do cinema após assistir um bom drama: colocamos-nos em sintonia com algo maior. Saímos iluminados de vida, de experiências humanas. As letras dos créditos passam lentamente e não conseguimos levantar da cadeira. São poucos segundos de introspecção. A extensão desses poucos segundos, é como a madrugada tem sido para mim.

Noite Estrelada.  Van Gogh   Por que um simples arbusto 
protagoniza esta cena?
Como no quadro clássico de Van Gogh (Noite Estrelada) na minha madrugada as estrelas circundam as nuvens. Cada estrela é como um universo de experiências que vivi. Todas elas interligadas pelos traços da minha personalidade, dos meus aprendizados. A textura marca a experiência como rugas. Não há alternativa a não ser unirmos nossa pequenez à grandeza do mundo. Em momentos como esse, cada respiração nos comunica a algo maior: o repositório de todos os dramas humanos. Para um jovem deitado no meio do nada, a solidão serve na verdade como uma conexão entre ele e as estrelas.

Nat King Cole.
Cantor de jazz e músico norte-americano.
 E então, qual seria a minha grande ideia, a grande tacada metafísica, abstrata, capaz de servir agora como uma luz, uma chave mestra para todas as minhas questões? É certo que ainda não estou no fim da vida, nem perto do meio, mas até agora, em todos esses anos, nunca pude ser tão grande como esperei um dia ser. A diferença é que neste minuto isso não é mais importante para mim. Minha vida, que ainda é tão marcada por conquistas não chegadas, ganha agora a importância pelo que sempre foi, pelo que sempre a preencheu.



Amo cada detalhe da minha particular existência nesse mundo, é este o segredo dessa madrugada de luzes. Estou desligado de qualquer coisa que agora não possua. Não à toa o segredo do crescimento em uma sociedade de consumo é a sensação humana de eterna insatisfação. Por maior que seja uma existência, ela se resume a mesma simplicidade de sempre: a concretização da felicidade. Com a impressão visível, desenhada nas estrelas, de que estou nesse mundo em busca de outra coisa a não ser a minha própria realização, sinto como se pudesse encarar com maior clareza o dia de amanhã.
(...)

Música: "There was a boy, a very strange enchanted boy/ They say he wondered very far.. very far.../ Over land and sea"... (Havia um garoto, um garoto muito estranho e encantador/Diziam que ele veio de muito longe, muito longe/ Além da terra e do mar..) NATURE BOY/ NAT KING COLE.





*A música Nature Boy pode ser ouvida no link direto para o vídeo. Consagrada na voz de Nat King Cole é de autoria de Eden Ahbez. Letra e tradução: AQUI.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

BRASIL, O PAÍS DO FUTURO

Tudo indica que o crescimento econômico brasileiro
se tornou estável.



Nesta semana o Ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou que o Brasil será em 2015 a 5ª maior economia do mundo. Este ano o país alcançou a 6ª posição após ultrapassar os ingleses.

O crescimento brasileiro acompanha o movimento global de desenvolvimento econômico que alguns emergentes conseguiram alcançar, são eles Brasil, China, Índia e Rússia. 

Podemos nos perguntar por que outros emergentes, como Argentina, não integram esse grupo ou não ostentam, ao menos, resultados semelhantes O certo é que, na America do Sul, por exemplo, não foram todos os estados que experimentaram o ajuste básico das suas finanças, da sua economia e da política, levado a sucesso por aqui. Nosso crescimento ainda é insuficiente para distribuir renda na velocidade que a população pobre necessita, mas os últimos 20 anos de governo são capazes de nos separar da tragédia maior que seria não ocupar, em perfeitas condições, a posição adequada na economia global.

A nossa possibilidade real é crescer entorno de 4% ao ano durante 10 a 20 anos. Isso significa impactar de maneira sensível a vida de cada cidadão em um espaço curto de tempo. Em séculos, talvez seja a geração que mais perceba a evolução da sua renda e da sua qualidade de vida, dia-a-dia.

Em 2010 o PIB cresceu 7,5%. Maior índice em 25 anos.
Entre 2003 e 2010 a média foi de 4%.
Estima-se 4% a 5% em 2012.

O crescimento econômico durante o período FHC foi menor do que o crescimento experimentado durante o governo Lula. Isso não significa que o círculo de crescimento tenha começado somente aí. Depois da redemocratização do país, o governo FHC foi o primeiro a conseguir com sucesso superar os maiores desafios de então: a inflação e a instabilidade política. É o nascimento do cenário que encontramos hoje. As dificuldades experimentadas com a primeira marcha do Plano Real, as crises econômicas constantes e a crise enérgica pesam ainda mais contra o governo tucano.

Atingido o ponto atual, com a manutenção de uma política econômica sóbria, que não jogou fora o potencial de crescimento brasileiro sufocado durante décadas por uma inflação ilusória, o próximo alvo deve ser aprimorar os acertos e enfrentar outros fatores que sufocam o crescimento, como a infra-estrutura, a corrupção, o sistema tributário, a baixa qualificação profissional, escassez de crédito e juros altos. 

Com menos de 10% da população economicamente ativa com diploma universitário, índice inferior a China, Índia e Rússia, o país demonstra que nossas fragilidades são bem maiores que os cuidados básicos com a economia. A questão tributária também demonstra gravidade, em 2011, de cada R$ 100 ganhos o brasileiro deixou R$ 36 nas mãos do estado e o pior: são impostos arrecadados onerando basicamente a produção.

Todos esperam, alguns com mais pressa e necessidade, a manutenção da estabilidade econômica nas próximas décadas. Contudo, ansiamos ainda mais por ver cair por terra os outros monstros que impedem o país do futuro de se tornar realidade. Os projetos dos próximos governos devem se ater às questões economicas até então superadas, mas o potencial brasileiro, escondido por debaixo de véus ainda mais espessos e dificultosos, só será atingindo vencendo inimigos ainda mais difíceis.  

Ainda em 2009, The Economist já anunciava o sucesso
econômico do Brasil.

domingo, 27 de novembro de 2011

Empobrecimento cultural. Culpa de quem?

 
Em Tempos Idos, Cartola canta o auge do samba.
O gênero está cada dia menos presente no subúrbio do Rio.
 O que está acontecendo com a cultura, cinema, teatro, televisão e música, escondem cúmplices tão culpados quantos os diretamente responsáveis pela produção de baixa qualidade que assolou a arte. Esses cúmplices são os intelectuais e os artistas que produzem com qualidade e que não enfrentaram ainda a responsabilidade pelos resultados gerais da cultura.

Especificamente sobre o Brasil, a situação é crítica. Atualmente jovens de elevada formação educacional, de nível superior às vezes, desconhecem o que caracteriza a qualidade artística mínima. Como eles conseguem se tornar profissionais de alto desempenho em áreas complexas da ciência enquanto consomem uma cultura característica de uma educação fragilizada? Isso desafia a lógica. Os jovens brasileiros que atingem alto rendimento nas universidades atingiriam resultados ainda melhores se fossem capazes de identificar a arte de qualidade.
Por que excelentes alunos não identificam boa música?
A complexidade técnica não acompanha o refinamento
do espírito.

Em parte, a culpa disso é o que acontece extramuros. Após as aulas o mundo do estudante volta a ser o mesmo. A televisão continua com a mesma programação de sempre, a rádio e a internet também. As conversas dos estudantes vão girar entorno do que está comumente disposto nesses meios e a escola não pode controlar o que acontece do lado de fora. A cultura do adolescente de classe média está repleta de livros, música, cinema e até teatro. O problema é que tudo isso superficial e ruim.

A televisão, uma das maiores vilãs, acusa o público pela baixa qualidade artística da programação. Para ela a programação é ruim porque o grande público não adere a produções mais sofisticas. Em busca de se financiar, a televisão atende ao público. Afinal, posso culpar as pessoas por não exigirem uma cultura que não têm?

A restrição à liberdade ou mesmo a conduta autocrática de dizer ao outro o que fazer da sua vida, é evitada pelos intelectuais que dominam a opinião, conseqüência decorrente da sua formação liberal. Afinal, a arte moderna nasceu rompendo paradigmas e superando críticos e valores. Assim, os intelectuais e os bons artistas celebraram com a arte ruim um pacto de mútua convivência.  Com esse mantra, eles se esbaldam nos bolsões de boa cultura e se sentem irresponsáveis pelo que as pessoas fazem com a tão cara liberdade artística e de consciência.
Há poucas décadas, a música popular brasileira
liderava a venda de vinis.
        
         Ledo engano. Os bárbaros um dia gritarão tão alto que penetrarão a mais dura das bolhas. Apagada da cultura de massas, a arte de qualidade sobrevive na memória dos grandes artistas e no culto dos intelectuais. Trata-se agora de expandir esses bolsões e convidar o grande público à mesa. Objetivo este só atingível com a flexão do verbo mais antigo em material de responsabilidade social: engajar. Só existe uma política de convivência possível com a arte ruim: tolerância zero.
               
         

sábado, 8 de outubro de 2011

Ao amor perdido


CASABLANCA (Michael Curtiz, 1942)
Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.
O clássico amor de cinema.

Toda a literatura da minha vida como amante são pedaços de papel que nem o melhor artista do mundo seria capaz de fazer arte. Talvez a colagem mais criativa fosse capaz de unir esses minúsculos fragmentos e fazer deles um quadro expressivo. Como os grandes retratos de miséria, meus affairs só expressariam indignidade.
Simplesmente esperei do mundo o melhor que ele podia oferecer. Esse é o grande mal das crianças mimadas. Elas continuam a acreditar que o mundo é um palco onde satisfazem os seus desejos. Ele é, contudo, o resultado do encadeamento sem lógica da vontade de inúmeros sujeitos. Com pesar, os mal acostumados descobrem que a vida representa a ação volitiva de muita gente, não apenas a sua.
 Existe um verso de Vinicius de Moraes que eu recitava antes que eles dormissem. “Dorme como dormirás um dia na minha poesia um sono sem fim”. Se esses versos os tocassem, não estaria sozinho hoje.
CINEMA PARADISO (Giuseppe Tornatore, 1988)
O filme sobre o cinema dos comuns
tinha também um grande amor.
 A minha avó cantava para eu dormir músicas as quais o seu pai cantava, provavelmente de folhas de cordel. Extremamente criativas, não podem ter outra fonte. Eu cantava para eles João Gilberto. A minha avó era uma excelente cantora. Meus amantes, porém, odiavam João Gilberto. “É amor, oh-ba-la-la, oh-ba-la-la, uma canção, quem ouvir, oh-ba-la-la, terá feliz o coração.” Hoje em dia um show de João Gilberto não sai por menos de quinhentos reais, eu cantava gratuitamente ao pé do ouvido para que dormissem em paz. Sempre os velei o sono, tal qual um bom amante deve fazer.
 Como Álvaro de Campos, eu bati no meu peito mais humanidades do que Cristo. Guardei no meu coração uma fonte permanente de respeito. O que me faz permanecer vivo, hoje, é a crença de que um dia poderei transferir a alguém todo o cuidado que estou disposto a fazer.
 Assim como uma crença inabalável, carrego todos os dias a confiança de que um dia irei entregar o meu principado à confiança da pessoa certa. É a solene trasmissão do título, a coroação.  Como o final de um grande show, espero pelo meu grand finale. O final feliz, hollywoodiano, novelesco quem sabe, em que anos de incompreesão encontrão o seu momento de espetáculo e grandeza.  
A UM PASSO DA ETERNIDADE. (Fred Zinnemann, 1953)
Burt Lancaster e Deborah Kerr.
DE OLHOS BEM FECHADOS.
(Stanley Kubrick. 1999)
Nicole Kidman e Tom Cruise

sábado, 20 de agosto de 2011

Nudez e sexualidade

Nascimento de Vênus, William-Adolphe Bouguereau.
A beleza da deusa graga do amor
tornou-se tema recorrente na arte.

A história da arte encontra-se relacionada com a história da representação da nudez humana. Desde a exibição heróica da nudez dos deuses gregos até as atuais campanhas de moda, o homem perseguiu na representação da nudez do semelhante uma forma de manifestação do erotismo.

Atualmente um recurso tornou-se difundido no entretenimento como medida de diferenciação entre a exibição tolerável e intolerável do corpo humano: o conceito de nudez parcial. Para Hollywood a nudez parcial, preservando o púbis e os órgãos sexuais, passou a ser a regra.  A moda também explora nas campanhas publicitárias a sensualidade e a nudez parcial.

 Com esse artifício a nudez aproximou-se ainda mais da cultura. Do ponto de vista da nudez,  a diferença entre os filmes pornográficos e os filmes de Hollywood passou a ser o objetivo, a finalidade, com que ela é representada. Nos primeiros ela surge como um acontecimento envolvido em uma trama maior de romance, suspense ou drama, nos segundos ela aparece diretamente retratada dentro de sua finalidade primordial de transmitir prazer. Cada dia mais longas, as cenas de nudez e sexo representadas nos filmes nos fazem questionar se essa regra diferenciadora continua sendo preservada. O quanto a indústria do cinema passou a explorar a nudez pela própria nudez?
A nova marca japonesa UNIQUO
aposta no óbvio: jeans e nudez parcial.


A nudez escancarada dos filmes pornográficos encontra a sua raiz ancestral na pornografia feita através do desenho na arte rupestre. A fotografia pornográfica e o cinema pornô, por sua vez, surgem com o advento da fotografia e do cinema. A arte rupestre, contudo, representa atos sexuais com a infantilidade e despudor de um homem que não conhecia a moral sexual que viria a trazer o grande conflito da exibição da nudez: a vergonha e a culpa. Na tradição bíblica, por exemplo, Adão e Eva passam a cobrir o corpo diante de Deus após comerem do fruto proibido e tornarem-se conhecedores do bem e do mal. Entretanto, nem a Bíblia se esvai em culpa, a vivência correta e saudável da sexualidade é o tema de um dos mais belos livros bíblicos, Cântico dos Cânticos, atribuído ao Rei Salomão.


Rei Salomão e a rainha de Sabá (1959).
Teus dois seios são como dois filhos gêmios da gazela,
que se apascentam entre os lírios.

Cântico dos Cânticos, 4:5.
O livro bíblico Cântico dos Cânticos é entendido por alguns como um código de prazeres adotado para a sexualidade a âmbito conjugal, tendo como paradigma a vivência saudável da sexualidade entre os noivos. Atualmente, o cuidado com a sexualidade a âmbito individual deve acompanhar o cuidado com a sexualidade a âmbito coletivo. Não se pode extirpar a nudez da sociedade como se tentou fazer na Idade Média ou nos séculos mais recentes de moral mais rigorosa, porque a pornografia envolve o direito humano de reconhecer a sua sexualidade, o direito de olhar para a sua própria nudez. Coletivamente, uma indústria pornográfica com limites éticos e a divulgação de idéias que nos afastem do hedonismo exacerbado são boas bandeiras.


Desde o desfile dos jovens em maio de 1968 na França, as idéias liberais que sacudiram a velha moral européia encontraram inúmeros desafios pela frente. Hoje sabemos que a vivência desregrada da sexualidade tem a mesma força de desumanizar que a vivência moralizadora da antiga moral. O medo de exibir a nudez pode ser mais saudável que o despudor em demonstrá-la. O risco da sexualidade não é apenas a culpa paralisante, mas também o despudor que transforma o homem e a mulher em puro objeto de desejo, desrespeitando seus sentimentos e sua condição de humanos. A dificuldade presente na nossa sociedade é a de saber dosar essas tensões em busca de um equilíbrio que nos encaminhe para uma vivência da sexualidade sem culpa e com respeito a dignidade de cada um. É o conhecimento do sexo como forma dígna de manifestação do afeto e propulsor de dignidade.

Pamela Anderson em sua 7ª capa de Playboy (1999).
Capa de 11 edições da revista, a atriz é símbolo
da paixão americana por nudez.
Neymar: ícone do futebol é explorado por
Capricho
, publicação voltada para o público feminino adolescente.

domingo, 24 de julho de 2011

APOTEOSE A U2

Capa do álbum All That You Can't Leave Behind.
"amor é a única bagagem que você não consegue carregar"
(trecho de música do disco)
Depois do sucesso vivido nos anos 80 que se estendeu por algum tempo nos anos 90, a banda de rock U2 voltou ao cenário musical com o álbum All That You Cant Leave Behind lançado em outubro de 2000. O sucesso do álbum se propagou rapidamente pelas rádios e conquistou não só o público casual que escuta hits de rock e pop, mas também os verdadeiros fãs da banda e os demais admiradores de música de qualidade. O álbum foi um acerto tão grande que o sucesso se estabilizou e a  nova fórmula serviu de base para  mais dez anos de acertos. Estamos em 2011 e All That You Can´t Leave Behind permanece atual e os álbuns do U2 continuam com muita qualidade.

Os erros que U2 cometeu nos anos 90 foram causados pela experimentação, contudo, isso não serve de escusa para aqueles que têm medo de experimentar. Em mais de trinta anos de formação e com doze álbuns de estúdio, o grupo mostra um grau de variação digno de quem realmente faz música tendo por base o conhecimento teórico e o talento.  De álbuns minimalistas que pareciam desprovidos de qualquer tecnologia, como The Joshua Tree (1987), a álbuns aflorados como o Zooropa (1993), U2 caminhou de influencias como Bob Dylan e Van Morrison a dance music. Tudo faz parte da história do grupo que não pode ser compreendido sem que se faça uma análise cuidadosa de sua variabilidade.

Árvore de Josué. Sempre solitária.
Deserto de Mojave, Estados Unidos.
O álbum The Joshua Tree (1987) tinha como marco visual uma “árvore de Josué”, espécie da flora do deserto de Mojave, Estados Unidos. O álbum Zooropa (1993) foi marcado visualmente por cores fortes e luminosas, identificadas com a modernidade da música eletrônica, do homem perdido na poesia e na melodia dos barulhos artificiais.  A simplicidade dos corais de igreja do belo gospel americano (música Still Haven't Found What I'm looking For) do primeiro álbum se findou com a luz artificial e o medo da perpetuidade do dia e da vigília (música Lemon) presentes no segundo álbum. Era a clássica ideação do homem contemporâneo perdido em cidades que nunca dormem. Em Lemon o backvocal futurista repete "midnight is where the day begins" (meia-noite é quando o dia começa).


Todas essas vivências em músicos talentosos como The Edge e Bono Vox, aliados de produtores geniais como Brian Enno e Daniel Lenois não poderiam terminar de outra forma que não no amadurecimento e isso gerou o sucesso de All That You Can´t Leave Behind. Agora, dois álbuns depois do marco ressuscitador, U2 precisa voltar a dar saltos sem medo de correr riscos. Só assim a banda será capaz de encontrar fórmulas ricas e modificar mais uma vez a sua identidade.

Nós não vemos a hora de U2 retornar à tentativa e erro, o rock and roll só agradece.

Capa do álbum Zooropa. Cores fortes, brilho e luminosidade.
"através da projeção de luz o homem pode ver a si mesmo de perto".
(música do álbum, referência à projeção de imagens)


domingo, 26 de junho de 2011

O 80º aniversário de Fernando Henrique Cardoso

FHC: 80 anos de pura história.

 
            Fernando Henrique Cardoso comemorou o seu 80º aniversário no dia 18 de junho. Símbolo da única oposição possível ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, FHC não recebeu nenhum telefonema, nem carta, nem manifestação pública por parte do rival. Os jornais destacaram, contudo, a carta escrita pela presidente Dilma Rousseff. Na carta elogiosa, ela atribui a FHC a estabilização da economia.
            Pela repercussão da imprensa à carta da presidente, tem-se a impressão de que o PT finalmente teve a coragem de assumir o legado deixado pelo governo de FHC ao invés de disseminar a ideologia de “herança maldita”, estratégia estapafúrdia que garantiu ao partido três vitórias seguidas nas eleições presidenciais.
            Entretanto, o singelo gesto presidencial não tem a força de redimir tantos anos propagadores dessas idéias de injustiça. Nem tampouco demonstra um sinal de mudança no comportamento petista. É na verdade um breve afago ainda fortemente marcado pela vergonha. Pela altura do orgulho petista, pode-se compreender como um gesto vitorioso para alguém dotado de um ego tão acentuado.
Depois do caos inflacionário, uma moeda capaz
de agregar valor a uma unidade.
            Independente do reconhecimento petista o importante é o reconhecimento que será dado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por intermédio da história. Mesmo com o débil esquerdismo que ainda domina as universidades brasileiras, não se cogita a hipótese de um atentado à memória dos fatos naquilo que eles evidenciam de mais notório. É que FHC deu o pontapé inicial, lançou a pedra fundamental do equilíbrio econômico e democrático. Nem as tão celebradas conquistas sociais do governo Lula seriam possíveis caso Lula tivesse que enfrentar o caos econômico-financeiro que o governo FHC enfrentou e foi capaz de afugentar. Ao invés de desafiar Lula para disputar uma nova eleição ou mesmo a um debate no seu instituto, como já fez anteriormente, Fernando Henrique Cardoso deveria desafiá-lo a suceder Itamar Franco nas condições em que ele sucedeu e ter conseguido os resultados que o seu governo conseguiu. Em suma: deveria desafiar Lula a ser FHC.
          Por ocasião do 80º aniversário, foi organizado um especial com oitenta depoimentos de personalidades da política, da economia, do jornalismo e das artes sobre FHC. Personalidades como George Soros, Bill Clinton, Fernando Gabeira, Kofi Annan, Mario Sabino, Pedro Malan, Miguel Reale Jr., Roberto Civita e Vargas Llosa deram o seu sincero depoimento sobre o ex-presidente.
Alain Touraine: o gênio francês é capaz de dar a
FHC o seu devido papel.
          Não obstante, é no depoimento do sociólogo francês Alain Touraine que me alongarei. Nas suas exatas palavras: “Fernando Henrique Cardoso, que vencera a trupe numerosa dos radicais da dependência, que levou a cabo com sucesso uma reforma monetária indispensável e garantiu a continuidade das instituições, criou verdadeiramente o novo Brasil no qual Lula fez entrar dezenas de milhões de brasileiros e onde Dilma age no sentido de diminuir as desigualdades. Desde Fernando Henrique Cardoso, o Brasil é o único país que se modernizou ao mesmo tempo política, cultural e economicamente. É nesta escala que se deve medir a obra daquele que, por seu pensamento pessoal, e dando ao seu país uma estabilidade institucional nunca antes conhecida, fez do Brasil um dos Grandes”.      
            O petismo não tem responsabilidade alguma com a história. Sua ocupação é o sustentáculo falacioso que atribui a Lula — o homem do povo — a salvação deste mesmo povo. Este é o final feliz do conto de fadas petista a que o partido e sua massa de militantes idólatras jamais conseguirão riscar de suas mentes, nem que seja a custa do assassínio dos fatos.
Lula e FHC.
O sociológo e o sapo.
            Porém, a sociedade brasileira é mais forte do que a ideologia e idolatria petistas criadas em torno de falácias sobre a história pessoal de Lula, as realizações do seu governo e o passado recente do Brasil. Essa máquina "ideologizante" — movida para perpetuar-se no poder — irá ranger e desmoronar na primeira eleição presidencial perdida. De tudo isso não restará pedra sobre pedra.
            A disposição histórica dos papéis de FHC e LULA para as conquistas recentes do Brasil não será feita neste mesmo cenário de disputa política e ideológica entre o PSDB e o PT. A história será escrita em um ambiente afastado dessas celeumas e livre de todo o partidarismo. Homens como Getúlio Vargas e Juscelino Kubstchek foram grandes o suficiente para afundar o Brasil nessa mesma disputa sentimental e de toda a paixão envolvida restam apenas linhas escritas no papel. Este será o destino de Fernando Henrique Cardoso: ser redimido pela história. 

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Belo é, é isso o que o Belo faz*

Davi de Michelangelo.

            Em uma leitura ocasional aos dezesseis anos tive contato com a frase que marcaria o meu primeiro amor: “o Belo é, é isso o que o Belo faz”. A frase é de Betsey Trotwood, tia e cuidadora de David Copperfield do clássico livro de Charles Dickens. Eu mal acordara para a sexualidade e — como de usual — estava apaixonado pela beleza.

            Ao ler a fala de Mrs. Betsey, imediatamente percebi o que acontecia na minha vida. Aquele rapaz pelo qual me apaixonara fascinava em todo o sentido da expressão usada pela personagem. “Ele era, era isso o que Ele fazia”.

            A sua personalidade não passava de um adendo para a sua estética, todas as suas ações estavam contaminadas por esse multiplicador. Por algum tempo o achei semelhante a Davi de Michelangelo. Davi por mais que inspirasse ideais gregos e renascentistas de beleza, revelava em suas mãos desproporcionais um convite ao conceito de beleza mais pós-moderno possível: a individualidade. Meu rapaz era individual e classicamente belo.

            Ele não tinha mãos desproporcionais como as de Davi. Mas as suas veias saltadas, sempre aparentes, assemelhavam-se aos contornos das veias do corpo da escultura. Era claro como mármore, mas quente como o desejo que ele me inspirava. Seu corpo não tinha pelos,  assim como uma estátua nua.

Davi com a cabeça de Golias. Caravaggio.

            Toda a minha paixão pela filosofia e pelos gregos estava materializada nele. Ele preferia Esparta a Atenas. Gostava de lutar e Esparta soava mais agradável à sua índole guerreira. Já eu, era fascinado pelo que o homem ateniense aprendeu a fazer melhor do que qualquer outro: pensar.

             Aos dezesseis anos era imaturo e fantasioso o suficiente para achar que era o homem mais inteligente do mundo e ele o rapaz mais belo que Deus tinha criado. Para elevá-lo, dizia-lhe que era mais inteligente do  que eu, o que não era mentira. Ambos éramos inteligentes. Hoje, nem eu nem ele somos. Jogamos nossa inteligência no lixo junto com os nossos sonhos e a nossa amizade. Não o vejo há tanto tempo que nem sei dizer se ao menos continua belo.        

            Em uma gravação ao - vivo de Ella Fitzgerald com Louis Armstrong, Ella pergunta a Louis: “você já se apaixonou?”. Louis responde: “já me apaixonei quatro vezes”. Como o jocoso Louis, eu também voltei a me apaixonar. Contudo, nunca a beleza foi novamente o motriz exclusivo da minha paixão. Como muitos dos sentimentos que conheci naqueles anos, a beleza se perdeu na inocência do chumbo da minha minha segunda infância. Se a encontrarei um dia, não sei. Restam-me as fortes recordações da imagem da nudez do meu primeiro amado, o corpo nu do meu herói grego/judeu estampado na  minha memória como uma tatuagem.

Willian Turner: auto-retrato.


(*qualquer semelhança com pessoas fictícias ou reais é liberdade poética, nenhum texto de contéudo pessoal deste Blog deve ser lido de forma a relacionar os textos com pessoas reais da vida do autor).